Etnoconhecimento sobre
abelhas sem ferrão (Anthophila, Apidae:
Meliponini) por moradores de
comunidade em Cabeceiras do Piauí, Piauí
Ethnoknowledge
about stingless bees (Anthophila, Apidae: Meliponini) by community residents in Cabeceiras
do Piauí, Piauí, Brazil
Etnoconocimiento sobre las abejas sin
aguijón (Anthophila, Apidae: Meliponini) por residentes
de la comunidad en Cabeceiras do Piauí, Piauí, Brasil
Márcio
Luciano Pereira Batista1; Paulo Roberto Ramalho Silva2; Eraldo
Medeiros Costa Neto3; Favízia Freitas de
Oliveira4; Roseli Farias Melo de Barros5
1Doutorando
em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Universidade Federal do Piauí e Professor Substituto
da Universidade Estadual do Piauí, Teresina, +55 86 9 981439-3940, marciolpb@hotmail.com; 2Doutor
em Biologia Animal e Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e
Aplicadas da Universidade Federal do Piauí, Teresina, Piauí, pramalhoufpi@yahoo.com.br; 3Doutor
em Ecologia e Recursos Naturais e Professor da Universidade Estadual de Feira
de Santana, Feira de Santana, Bahia, eraldont@hotmail.com;
4Doutora em Ciências Biológicas e Professora do Instituto de Biologia,
Departamento de Zoologia, Laboratório de Bionomia,
Biogeografia e Sistemática de Insetos da Universidade Federal da Bahia,
Salvador, Bahia, favosgyrl@gmail.com; 5Doutora
em Botânica, Professora Titular do Departamento de Biologia da Universidade
Federal do Piauí, Teresina, Piauí, rbarros@ufpi.edu.br.
Recebido: 04/03/2020;
Aprovado: 05/06/2020
Resumo: A acuidade de se obter o conhecimento da diversidade de abelhas nativas
de um determinado local e suas inter-relações com o ecossistema são inúmeras,
afinal, além de serem os maiores polinizadores e responsáveis pelo
desenvolvimento das plantas existentes do meio ambiente, também se destacam
pelo seu valor econômico e sociocultural. Objetivou-se registrar o etnoconhecimento sobre abelhas sem ferrão pelos moradores
da comunidade José Gomes, município de Cabeceiras do Piauí, Piauí. Os dados
foram levantados por meio de entrevistas semiestruturadas aplicadas a 43 atores
locais, sendo 39 homens e quatro mulheres. Os meliponíneos
foram capturados por meio de rede entomológica e vasilhames, e encaminhados
para identificação. Foram coletados 124 espécimes, distribuídos em seis gêneros
e 13 espécies de abelhas sem ferrão. Das espécies amostradas, as mais
abundantes foram Scaptotrigona sp. (n=25), Trigona
sp. (n=17), Tetragona sp. (n=14), Trigona spinipes (n=13) e Partamona
ailyae (n=10). O índice de
Shannon-Wiener (H’) foi utilizado para estimar a diversidade de abelhas sem
ferrão, que foi de H’=1,02. Constatou-se que os moradores percebem e reconhecem
a diversidade de meliponíneos existentes na área
estudada, não obstante é necessário que se estabeleça maior divulgação sobre a importância
do papel desses insetos para a conservação do ecossistema, aprimorado por meio
de uma intensificada educação ambiental, principalmente no que concerne a
conservação das abelhas sem ferrão e das plantas melitófilas.
Palavras-chave: Etnobiologia; Etnoentomologia; Comunidades tradicionais; Conhecimento
tradicional; Meliponíneos.
Abstract: The accuracy of
obtaining knowledge of the diversity of native bees in a given location and
their interrelationships with the ecosystem are numerous, after all, besides
being the biggest pollinators and responsible for the development of existing
plants in the environment, they are also stand out for their economic and
socio-cultural value. The objective was to record the ethnoknowledge about
stingless bees by the residents of the José Gomes community, in the municipality
of Cabeceiras do Piauí, Piauí. The data were collected through semi-structured
interviews applied to 43 local actors, 39 men and four women. The meliponines were captured through entomological net and containers, and sent for identification. 124 specimens were
collected, distributed in six genera and 13 species of stingless bees. Of the
sampled species, the most abundant were Scaptotrigona sp. (n =
25), Trigona sp. (n = 17), Tetragona sp. (n = 14), Trigona spinipes (n =
13) and Partamona ailyae (n = 10). The Shannon-Wiener index (H')
was used to estimate the diversity of stingless bees, which was H’= 1.02. It
was found that the residents perceive and recognize the diversity of meliponines existing in the studied area, however it is
necessary to establish greater disclosure about the importance of the role of
these insects for the conservation of the ecosystem, improved through an
intensified environmental education, mainly regarding the conservation of
stingless bees and melitophilous plants.
Keywords: Ethnobiology; Ethnoentomology; Traditional communities; Traditional
knowledge; Meliponines.
Resumen: La precisión de obtener conocimiento de la diversidad de las abejas nativas en un lugar determinado y sus interrelaciones con el ecosistema son
numerosas, después de todo, además
de ser los mayores
polinizadores y responsables del
desarrollo de plantas existentes en
el medio ambiente, también son destacan
por su valor económico y sociocultural. El objetivo
era registrar el etnoconocimiento
sobre las abejas sin aguijón por parte de los residentes de la comunidad de José Gomes, en el municipio de Cabeceiras do
Piauí, Piauí. Los datos fueron
recolectados a través de entrevistas semiestructuradas aplicadas a 43 actores
locales, 39 hombres y cuatro mujeres. Las meliponinas fueron capturadas a través de redes entomológicas y contenedores, y enviadas para su identificación. Se recolectaron
124 especímenes, distribuidos
en seis géneros y 13 especies
de abejas sin aguijón. De las especies muestreadas, las más abundantes fueron Scaptotrigona sp.
(n = 25), Trigona
sp. (n = 17), Tetragona
sp. (n = 14), Trigona spinipes (n =
13) y Partamona ailyae (n =
10). El índice de Shannon-Wiener (H ') se utilizó
para estimar la diversidad
de las abejas sin aguijón, que fue H ’= 1,02. Se encontró que los residentes perciben y reconocen la diversidad de meliponinas existentes en el área estudiada, sin embargo, es necesario establecer una mayor divulgación sobre la importancia del papel de estos insectos para la conservación del ecosistema, mejorado a través de una educación
ambiental intensificada, principalmente sobre la conservación de abejas sin aguijón y plantas melitofílicas.
Palabras clave: Etnobiología; Etnoentomología; Comunidades tradicionales;
Conocimiento tradicional; Meliponinas
INTRODUÇÃO
A biodiversidade de abelhas no planeta é elevada, já sendo descritas
cerca de 20.000 espécies (SILVA et al., 2014), em que a maioria tem hábito
solitário e, aproximadamente, 1.000 são sociais. De acordo com Cortopassi-Laurino e Nogueira Neto
(2016) as abelhas sem ferrão ou meliponíneos (Hymenoptera, Apidae, Meliponini), compõem o grupo Eussociais,
distribuídas nas regiões tropical e subtropical do mundo, representadas por
aproximadamente 600 espécies, encontradas na África, Oceania, Austrália, Porção
Tropical do México, América Central e do Sul.
No Brasil estima-se que existam em torno de 1.700 espécies de abelhas
(MOURE et al., 2013), distribuídas em cinco famílias (SILVA et al., 2014), dentre
estas, aparecem as abelhas sem ferrão em volta de 250 espécies, pertencentes à tribo
Meliponini, dividida em 29 gêneros (PEDRO, 2014), que
são objeto de constantes pesquisas, visando desenvolver os conhecimentos para a
diversificação da sua produção e uso sustentável. Além de que as informações
disponíveis sobre os meliponíneos são pouco
expressivas, se comparadas às abelhas africanas.
Apesar de que na região Nordeste já ocorra criações de
abelhas sem ferrão (ALVES et al., 2007) no estado do Piauí os trabalhos, são
incipientes (TORQUATO et al., 2009; OLIVEIRA; MARANDINO, 2011; NASCIMENTO et al., 2016; BATISTA et al., 2019).
A importância das abelhas nativas é reconhecidamente
alta para o meio ambiente, uma vez que são consideradas polinizadoras eficazes de
30% a 80% das culturas silvestres e agrícolas (KERR et al., 2001). A
polinização é um artífice para a conservação da biodiversidade e se faz cada
vez mais necessário o conhecimento da inter-relação dos polinizadores com a
comunidade florística.
A acuidade de se obter o conhecimento da diversidade de abelhas nativas
de um determinado local e suas inter-relações com o ecossistema é vasta,
afinal, além de serem os principais polinizadores e responsáveis pela
reprodução das plantas existentes no meio ambiente, também se destacam pelo seu
valor econômico e sociocultural. Palazuelos Ballivian (2008) destaca que as abelhas sem ferrão possuem
um papel significativo na religião, mitos, ritos, crenças, bem como na
alimentação de vários povos do mundo.
Diante do que foi exposto e partindo do pressuposto de que cada
população humana possui os saberes da diversidade biológica, questionou-se:
Qual o conhecimento existente na população de José Gomes acerca dos meliponíneos?
Pressupõe-se que os moradores da comunidade José Gomes
detêm conhecimento acurado a respeito das espécies de abelhas nativas existentes,
integrando desde os aspectos da ecologia e taxonomia, aos diversos aspectos
utilitários e etológicos, devido a convivência entre as várias gerações no local
e pela exploração no uso dos produtos gerados. Com isso, objetivou-se relatar o
etnoconhecimento da população e a diversidade de
abelhas sem ferrão da comunidade de José Gomes, município de Cabeceiras do
Piauí, Piauí.
MATERIAL E
MÉTODOS
Área de Estudo
O estudo foi realizado na comunidade José Gomes
(4º27’34,7” S e 42º20’58” W), município de Cabeceiras do Piauí, mesorregião
Norte Piauiense e microrregião do Baixo Parnaíba Piauiense (Figura 1). O
referido município possui área de 608,525 km2 e população estimada
de 9.928 habitantes, sendo 1.657 na zona urbana e 8.271 na zona rural (IBGE,
2010).
Figura 1. Localização
do município de Cabeceiras do Piauí, Piauí e da comunidade José Gomes.
Geologicamente, a área de estudo assenta-se sobre a
bacia sedimentar (aulacógeno) do Parnaíba (AGUIAR;
GOMES, 2004), sofrendo ações do clima Tropical Subúmido
Seco (ANDRADE JÚNIOR et al., 2004), caracterizado por insolação acima de 2.000
h/ano e médias de precipitações e temperaturas (mínimas e máximas) anuais de
1.535 mm, 22ºC e 35ºC, respectivamente.
Na região de Cabeceiras do Piauí, há a ocorrência da
estiagem em cerca de seis a sete meses do ano, sendo as precipitações pluviais
habitualmente torrenciais e concentradas nos quatros primeiros meses do ano.
Em razão do estado do Piauí possuir uma elevada
heterogeneidade espacial e ambiental, a cobertura vegetal do Estado
apresenta-se como um mosaico de tipos vegetacionais
que vão desde os mais secos, como as caatingas, até os mais úmidos, como as
florestas estacionais semideciduais nos limites dos
estados do Piauí e Maranhão (BOTREL et al., 2015; SOUSA, et al., 2017).
Aplicação
do formulário
Inicialmente, foi aplicada a técnica do Rapport (BERNARD,
2017), como forma de adquirir familiarização e confiança com os membros da
comunidade. Assim, nos primeiros meses da pesquisa foram estabelecidos contatos
prévios com líderes da comunitários e posterior apresentação da proposta do
trabalho para os atores locais. O universo amostral dos entrevistados na
comunidade foi definido a partir da metodologia sugerida por Begossi et al. (2010), em decorrência dos estudos em comunidades,
com até 50 famílias, proceder entrevistas em todas as residências. Os dados
foram obtidos por meio de formulários semiestruturados padronizados, contendo
perguntas de cunho socioeconômico e etnobiológico
(BERNARD, 2017), entrevistando-se um morador por residência (BEGOSSI et al., 2010),
havendo a permissão do entrevistado para apresentação dos dados e imagens,
mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A
pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade
Federal do Piauí (UFPI), nº do parecer 1.895.391, autorizada pelo Sistema de
Autorização e Informação em Biodiversidade - SISBIO sob número 56980-1 e
cadastrada no SisGen n° A7C500A.
Coleta
e Análise dos Dados
Os meliponíneos foram coletados
na vegetação do entorno da comunidade, com a ajuda de 14 “especialistas locais”
que detinham conhecimento acerca das abelhas sem ferrão, no momento da
realização das turnês-guiadas (BERNARD, 2017). As coletas foram realizadas duas
vezes por mês em dias alternados, com condições atmosféricas favoráveis,
durante seis meses (abril a setembro de 2017), com auxílio de redes
entomológicas, sobre as flores, em trilhas na mata, córregos e diretamente dos
ninhos, seguindo a metodologia proposta por Sakagami
et al. (1967), com modificações. Os moradores receberam vasilhames onde
acondicionaram as abelhas coletadas, e periodicamente, os
mesmos foram recolhidos, conforme metodologia adaptada de Costa Neto
(2003).
Os espécimes capturados foram mortos em câmara mortífera
contendo acetado de etila e transferidos para frascos contendo álcool 96%,
sendo conduzidos ao Laboratório de Entomologia do Centro de Ciências Agrárias
da Universidade Federal do Piauí (UFPI), para reidratação, que foi procedida transferindo-os
para o álcool absoluto por 20 minutos, e depois transferidos para uma solução
de álcool absoluto e clorofórmio na proporção de 1:1, por mais 20 minutos. Em
seguida, os espécimes foram transferidos para uma folha de papel absorvente
macio e cobertos inteiramente por 40 minutos para que ficassem secos.
Prosseguindo, os insetos foram montados em uma placa de isopor com alfinetes
entomológicos (KRUG; ALVES DOS SANTOS, 2008), e deixados próximos a uma lâmpada
de luz quente por cerca de 40 minutos. Após este procedimento, os pelos dos
insetos foram penteados sob a lupa com pincel número dois, macio, confeccionados
com pelos de orelha de porco, sendo transferidos para um depósito e enviado
pelos correios para identificação por especialistas na Universidade Federal da
Bahia (UFBA), posteriormente foram depositados na Coleção Entomológica do Museu
de História Natural (MHNBA) da UFBA.
Os resultados obtidos foram expressos em porcentagens
com o auxílio do software Microsoft Office Excel 2016. O índice de Shannon (H’)
para calcular a diversidade de espécies coletadas na comunidade (KREBS, 1978),
que mede o grau de incerteza em prever a que espécie pertencerá um indivíduo
escolhido, ao acaso, em uma amostra. Quanto menor o valor do índice de Shannon,
menor o grau de incerteza e, portanto, a diversidade da amostra é baixa. A
diversidade tende a ser mais alta quanto maior for o valor do índice, calculado
por meio da equação 1.
Em
que: H’ =
índice de diversidade de Shannon-Wiener; S é o número total de
espécies; pi = ni
/ N; ni corresponde ao número de indivíduos
da espécie i presente na amostra; N representa
o número total de organismos na amostra.
RESULTADOS E
DISCUSSÃO
Dente os moradores da comunidade José Gomes, 90,70%
pertencem ao gênero masculino e 9,30% ao gênero feminino, distribuídos nas
faixas etárias que variaram entre 18 e 24 anos (2,32%), 25 a 59 anos (65,12%) e
a partir de 60 anos (32,56%).
No que concerne ao perfil socioeconômico dos
comunitários, a maior parte destes sobrevivem da lavoura (53,49%), cultivando
principalmente feijão (Vigna unguiculata
(L.) Walp.), arroz (Oryza sativa L.), abóbora (Cucurbita
pepo L.), milho (Zea mays L.) e
melancia (Citrullus lanatus
(Thumb.) Matsum & Nakai),
enquanto 20,93% são aposentados e se utilizam desse benefício para sua sobrevivência,
14,31% vivem da pesca, 6,63% atuam como pedreiro, 2,32% são funcionários
públicos, atuando como professor da educação básica do município e 2,32% vivem do
comércio.
Em função da preponderância do trabalho agrícola
familiar em Cabeceiras do Piauí, esse cenário confirmou as análises de Silva et
al. (2016) que destacaram a agricultura familiar nas transformações ocorridas
no espaço rural de sociedades capitalistas desenvolvidas, configurando-se, como
uma nova categoria da economia agrícola, que incorpora múltiplas situações
particulares.
Quanto à escolaridade dos moradores, 60,32% possuem o
Ensino Fundamental Incompleto, 16,30% Ensino Fundamental Completo, 2,32%
possuem o Ensino Médio Completo, 2,32% o Ensino Médio Incompleto e 18,74%
informaram que não são escolarizados. Constata-se que a inexistência de escola
na comunidade dificultou o acesso à educação por parte de muitos comunitários,
justificando o percentual de moradores com Ensino Fundamental Incompleto e não escolarizados.
Somado a isso, a falta de acesso a conduções, as condições precárias das
estradas, o árduo trabalho praticado na agricultura de subsistência e o elevado
índice de migração dos moradores para as zonas urbanas em busca de melhores
oportunidades de trabalho, inviabilizaram o prosseguimento dos estudos de uma quantidade
significativa dos atores locais.
Situação semelhante também foi verificada Batista et al. (2016) ao estudarem a
comunidade rural Novo Nilo/PI e da mesma forma, a pesquisa de Oliveira e Menini Neto (2012) no povoado de Manejo, Lima Duarte/MG,
ao observaram o nível de escolaridade da população local.
Quanto ao uso do mel, 25,4% dos entrevistados o obtêm
por meio da compra e utilizam como remédio e alimento; 20,9% compram e utilizam
somente para remédio misturado com o sumo do limão-azedo (Citrus limonum Risso) para tratar de doenças como a gripe, resfriado e tosse,
16,9% coletam e usam como remédio e alimento, 11,3% coletam e usam
exclusivamente como remédio de forma in natura no tratamento de
inflamação da garganta e 25,5% não coletam e nem usam. É importante ressaltar
que os atores locais citaram apenas o uso ou não do mel, diante dos vários
produtos que as abelhas oferecem. Estes dados são corroborados por Reyes-González
(2014), ao verificar que vários povos consomem o mel das abelhas sem ferrão na
alimentação, acompanhado de uma bebida quente, e como remédio ao fazerem uma
mistura do mel principalmente com o suco de limão, sendo essa mistura utilizada
para tratar diversas doenças como: resfriado, tosse, bronquite e outras doenças
respiratórias. Além de ser utilizado como antisséptico e anti-inflamatório.
Costa Neto e Pacheco (2005), ao estudarem o uso de
insetos como recursos medicinais por moradores do povoado de Pedra Branca/BA,
observaram propriedades atribuídas, ou seja, da quantidade de doenças tratáveis
com remédios obtidos de insetos. A abelha arapuá, Trigona spinipes (Fabricius, 1793) foi a etnoespécie mais versátil, sendo prescrita para 11
indicações, dentre as quais, a gripe. Ainda na referida pesquisa foi registrado
o uso do mel de abelha uruçu (Melipona sp.) para gripe, bronquite, tosse, asma e problemas intestinais.
Para os moradores, dos seres vivos percebidos como
“insetos”, a maioria (60%) pertence a classe Insecta, 16% Aracnida,
12% Mammalia, 4% Amphibia, 4%
Diplopoda, e 4% Reptilia, e
são considerados como feios, sujos e perigosos, conforme cita moradoras: “São bichos que maltratam quando morde, tem
gente que até morre” (C. 55 anos); “Eu
faço é matar na hora que eu vejo esses bicho ruim (D. 45 anos)”. Esse fato
é corroborado por outros estudos etnoentomológicos os
quais citam que os animais tidos como “insetos” são vistos pela população como
nojentos, nocivos, perigosos, ou que podem causar algum dano à saúde humana
(COSTA NETO; PACHECO, 2004). Desse modo, os moradores da comunidade José Gomes
incluem diferentes animais no etnogrupo inseto.
Do ponto de vista da biodiversidade de abelhas locais,
foram coletados 124 espécimes, distribuídos em seis gêneros e 13 espécies de
abelhas sem ferrão, sendo 25 machos e 99 fêmeas, numa proporção de 0,24 machos
para cada fêmea. Do total das espécies amostradas, as mais abundantes foram Scaptotrigona sp.. (n=25), sendo
a espécie mais expressivamente encontrada, seguida da Trigona
sp. (n = 17), Tetragona sp. (n = 14), Trigona
spinipes (Fabricius, 1793) (n = 13) e Partamona
ailyae (Camargo, 1980 (n = 10),
totalizando 72,58% dos indivíduos amostrados (Tabela 1).
Tabela 1. Espécies de meliponíneos
machos e fêmeas coletadas na comunidade José Gomes, Cabeceiras do Piauí,
Nordeste do Brasil. |
||||||||||
Espécies |
Nome Popular |
Número de Indivíduos |
||||||||
|
Macho |
Fêmea |
Total |
|||||||
Melipona (Michmelia)
aff. flavolineata
(Friese, 1900) |
Uruçu-amarela |
0 |
8 |
8 |
|
|||||
Oxytrigona tataira (Smith, 1863) |
Tataíra |
0 |
6 |
6 |
|
|||||
Partamona ailyae (Camargo, 1980) |
Cupira |
0 |
10 |
10 |
|
|||||
Partamona chapadicola (Pedro & Camargo, 2003) |
Cupira |
0 |
9 |
9 |
|
|||||
Partamona seridoensis (Pedro & Camargo, 2003) |
Cupira |
0 |
2 |
2 |
|
|||||
Scaptotrigona aff. depilis (Moure,
1942) |
Canudo |
0 |
8 |
8 |
|
|||||
Scaptotrigona sp. (machos) |
Canudo |
25 |
0 |
25 |
|
|||||
Tetragona clavipes (Fabricius, 1804) |
Borá |
0 |
5 |
5 |
|
|||||
Tetragona sp. |
Borá |
0 |
14 |
14 |
|
|||||
Trigona hyalinata (Lepeletier,
1836) |
Arapuá |
0 |
2 |
2 |
|
|||||
Trigona pallens (Fabricius, 1798) |
Olho-de-vidro |
0 |
5 |
5 |
|
|||||
Trigona spinipes (Fabricius, 1793) |
Arapuá |
0 |
13 |
13 |
|
|||||
Trigona sp. |
Sanharó |
0 |
17 |
17 |
|
|||||
|
|
25 |
99 |
124 |
|
|||||
A comunidade apresenta uma variedade de espécies de
abelhas sem ferrão, corroborando com Silveira et al. (2002) que destacaram que
o Brasil é rico em diversidade de abelhas nativas sem ferrão.
Dentre as espécies identificadas por taxonomistas, os
especialistas locais reconheceram sete tipos diferentes de abelhas sem ferrão
que foram reconhecidas com base em suas características morfológicas e
comportamentais, comprovada após classificação taxonômica, conforme a Tabela 2.
Isso leva a crer justamente, que a maioria dos residentes possui em seus quintais
e nas roças plantas que são visitadas pelas abelhas. O mesmo aspecto é
observado nas andanças pelas matas da comunidade, segundo relatos de
residentes:
“Aqui na comunidade
nós planta várias plantas para nossa alimentação e a gente veja muitas abelhas nas flor dessas plantas, e cremos que isso e importante
tanto para a flor como para a abelha, pois uma está alimentando a outra, e a
planta desenvolve o fruto” (A., 61 anos).
“Quando
andamos pelo mato e vamos para a roça também existe várias flor com muitas
abelhas, como a flor do piqui, do mameleiro,
do babaçu, do podói e da unha de gato e a gente sabe
que as abelhas estão fazendo uma coisa ali que ajuda tanto a planta como a ela
mesmo, e acho que estão se alimentando (abelhas) das flor e fazendo as flor
produzir fruto” (S., 55 anos).
O conhecimento dessas populações acerca dos insetos
está intimamente ligado ao tempo em que eles vivem no ambiente, permitindo-lhes
compreender a lógica do equilíbrio, suas interligações físicas e biológicas do
ecossistema (LÉVI-STRAUS, 1970). Essa sabedoria é uma forma de perceber a
natureza pelas diferentes sociedades tradicionais, onde elas possuem
conhecimento minucioso da diversidade biológica e ecológica, ordenando e
classificando a natureza. Sustenta ainda a hipótese de que, esses povos ao
agrupar e nomear de forma escalonada e abrangente os seres vivos, estão
pensando taxonomicamente, e que isso é “algo
compartilhado por todas as sociedades humanas” (GIANNINI, 1995).
Tabela
2. Etnoespécies
identificadas pelos moradores da comunidade José Gomes, Cabeceiras do Piauí,
Piauí conforme comportamento e morfologia das abelhas sem ferrão. |
|||
Etnoespécie |
Espécie |
Comportamento |
Morfologia |
(Conhecimento local) |
(Conhecimento local) |
||
Arapuá/Irapuá |
Trigona spinipes (Fabricius, 1793) |
“Muito agressiva, tenta entrar nos ouvidos e nariz para se
defender, além de se enrolar nos cabelos e morder a pele”. (C. 55 anos) |
“É pequena e é toda escura”. (C. 55 anos) |
Trigona hyalinata (Lepeletier,
1836) |
|||
Borá |
Tetragona clavipes (Fabricius, 1804) |
“Agressiva, principalmente na quentura, se defende mordendo a
pele e se enrolando nos cabelos” (A. 61 anos) |
“É comprida, e possui uma cor marron-escura
e o mel é azedo”. (A.
61 anos) |
Tetragona sp. |
|||
Canudo |
Scaptotrigona aff. depilis (Moure,
1942) |
“Muito agressiva, solta um líquido nos cabelos e morde” (D.40 anos) |
“Possui uma cor preta brilhante, pequenas asas, com uns pontos
brancos no peito”. (D.
40 anos) |
Scaptotrigona sp. |
|||
Cupira |
Partamona ailyae (Camargo, 1980) |
“Muito zangada e defende
seu ninho” (M. 50 anos) |
“Ela é pequena e preta parece até com um cupim, faz os ninhos no
cupinzeiro”. (M. 50
anos) |
Partamona chapadicola (Pedro & Camargo, 2003) |
|||
Partamona seridoensis (Pedro & Camargo, 2003) |
|||
Olho-de-vidro, cutia-o-de-purga |
Trigona pallens (Fabricius, 1798) |
---- |
---- |
Sanharó |
Trigona sp. |
“Agressiva, se enrola nos cabelos e morde. Faz seus ninhos
nos ocos das árvores”. (B. 46 anos) |
“É pequena de cor preta brilhante”. (B. 46 anos) |
Tataíra |
Oxytrigona tataira (Smith, 1863) |
“Agressiva, libera uma meleca que queima a pele da pessoa,
para se defender”. (R. 38 anos) |
“É pequena de cor preta”. (R. 38 anos) |
Uruçu-amarela |
Melipona (Michmelia)
aff. flavolineata
(Friese, 1900) |
“Pouco agressiva, só beslica a pele”.
(A. 61 anos) |
“Ela é bonita, tem os pelos amarelos da cor de ouro”. (A.
61 anos) |
A diversidade
de abelhas sem ferrão coletadas na comunidade foi de H’ = 1,02. Este dado foi
praticamente semelhante aos de outras áreas da região Nordeste do Brasil, como
os de Sousa et al. (2005) que na Reserva Biológica Guaribas/PB, encontraram a
maior diversidades de abelhas Euglossina (Hymenoptera, Apidae), segundo o
índice de Shannon-Wiener, nas áreas de Mata com valor de (H' = 0,97), e de
Tabuleiro (H' = 0,94), tendo a área de Transição
uma diversidade menor (H' = 0,64).
No estado Piauí, o trabalho de Oliveira (2011), avaliou a
diversidade de abelhas silvestres Euglossini (Hymenoptera, Apoidea) na região
do Delta do Parnaíba, Brasil e a percepção da importância das abelhas pela
população local, que apresentou um índice de Shannon-Winner,
baixo nas duas áreas de coleta, sendo de H’= 0,680 na área de Boa Vista e de
H’= 0,522 na área de Reserva Legal da empresa Vegeflora
Extrações do Nordeste Ltda. Essa baixa diversidade de abelhas implica
diretamente no conhecimento da população acerca das abelhas.
O conhecimento sobre as abelhas sem ferrão repercute no
entendimento da distribuição e nas inter-relações sistêmicas destes insetos com
seus habitats, destacando-se como uma ferramenta de valorização e empoderamento
do patrimônio natural por comunidades tradicionais. Isto implica na conservação
ambiental, no desenvolvimento de atividades produtivas sustentáveis, empregando
os serviços ecológicos disponíveis in
loco, fomentando a produção de gêneros alimentícios de maior qualidade e
quantidade, constituindo-se como uma técnica para implementação de identidade geográfica.
Enfim, subsidia a reorientação e o desenvolvimento endógeno da comunidade,
assegurando seus recursos e seu modo de vida a longo prazo.
CONCLUSÃO
Os moradores da comunidade José Gomes município de Cabeceiras
do Piauí/PI percebem e reconhecem a diversidade de meliponíneos
existentes na área estudada, não obstante é necessário que se estabeleça maior
divulgação sobre a importância do papel desses insetos para a conservação do
ecossistema, aprimorado por meio de uma intensificada educação ambiental,
principalmente no que concerne a conservação das abelhas sem ferrão e das
plantas melitófilas.
AGRADECIMENTO(S)
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), pela concessão de bolsa ao primeiro autor.
Aos moradores da comunidade José Gomes, Cabeceiras do
Piauí/PI, pela parceria, acolhimento e disponibilidade em auxiliar para o
desenvolvimento desta pesquisa.
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