Etnoconhecimento sobre abelhas sem ferrão (Anthophila, Apidae: Meliponini) por moradores de comunidade em Cabeceiras do Piauí, Piauí

 

Ethnoknowledge about stingless bees (Anthophila, Apidae: Meliponini) by community residents in Cabeceiras do Piauí, Piauí, Brazil

 

Etnoconocimiento sobre las abejas sin aguijón (Anthophila, Apidae: Meliponini) por residentes de la comunidad en Cabeceiras do Piauí, Piauí, Brasil

 

 

Márcio Luciano Pereira Batista1; Paulo Roberto Ramalho Silva2; Eraldo Medeiros Costa Neto3; Favízia Freitas de Oliveira4; Roseli Farias Melo de Barros5

 

1Doutorando em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Universidade Federal do Piauí e Professor Substituto da Universidade Estadual do Piauí, Teresina, +55 86 9 981439-3940, marciolpb@hotmail.com; 2Doutor em Biologia Animal e Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Federal do Piauí, Teresina, Piauí, pramalhoufpi@yahoo.com.br; 3Doutor em Ecologia e Recursos Naturais e Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, Bahia, eraldont@hotmail.com; 4Doutora em Ciências Biológicas e Professora do Instituto de Biologia, Departamento de Zoologia, Laboratório de Bionomia, Biogeografia e Sistemática de Insetos da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, favosgyrl@gmail.com; 5Doutora em Botânica, Professora Titular do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Piauí, Teresina, Piauí, rbarros@ufpi.edu.br.

 

Recebido: 04/03/2020; Aprovado: 05/06/2020

 

Resumo: A acuidade de se obter o conhecimento da diversidade de abelhas nativas de um determinado local e suas inter-relações com o ecossistema são inúmeras, afinal, além de serem os maiores polinizadores e responsáveis pelo desenvolvimento das plantas existentes do meio ambiente, também se destacam pelo seu valor econômico e sociocultural. Objetivou-se registrar o etnoconhecimento sobre abelhas sem ferrão pelos moradores da comunidade José Gomes, município de Cabeceiras do Piauí, Piauí. Os dados foram levantados por meio de entrevistas semiestruturadas aplicadas a 43 atores locais, sendo 39 homens e quatro mulheres. Os meliponíneos foram capturados por meio de rede entomológica e vasilhames, e encaminhados para identificação. Foram coletados 124 espécimes, distribuídos em seis gêneros e 13 espécies de abelhas sem ferrão. Das espécies amostradas, as mais abundantes foram Scaptotrigona sp. (n=25), Trigona sp. (n=17), Tetragona sp. (n=14), Trigona spinipes (n=13) e Partamona ailyae (n=10). O índice de Shannon-Wiener (H’) foi utilizado para estimar a diversidade de abelhas sem ferrão, que foi de H’=1,02. Constatou-se que os moradores percebem e reconhecem a diversidade de meliponíneos existentes na área estudada, não obstante é necessário que se estabeleça maior divulgação sobre a importância do papel desses insetos para a conservação do ecossistema, aprimorado por meio de uma intensificada educação ambiental, principalmente no que concerne a conservação das abelhas sem ferrão e das plantas melitófilas.

 

Palavras-chave: Etnobiologia; Etnoentomologia; Comunidades tradicionais; Conhecimento tradicional; Meliponíneos.

 

Abstract: The accuracy of obtaining knowledge of the diversity of native bees in a given location and their interrelationships with the ecosystem are numerous, after all, besides being the biggest pollinators and responsible for the development of existing plants in the environment, they are also stand out for their economic and socio-cultural value. The objective was to record the ethnoknowledge about stingless bees by the residents of the José Gomes community, in the municipality of Cabeceiras do Piauí, Piauí. The data were collected through semi-structured interviews applied to 43 local actors, 39 men and four women. The meliponines were captured through entomological net and containers, and sent for identification. 124 specimens were collected, distributed in six genera and 13 species of stingless bees. Of the sampled species, the most abundant were Scaptotrigona sp. (n = 25), Trigona sp. (n = 17), Tetragona sp. (n = 14), Trigona spinipes (n = 13) and Partamona ailyae (n = 10). The Shannon-Wiener index (H') was used to estimate the diversity of stingless bees, which was H’= 1.02. It was found that the residents perceive and recognize the diversity of meliponines existing in the studied area, however it is necessary to establish greater disclosure about the importance of the role of these insects for the conservation of the ecosystem, improved through an intensified environmental education, mainly regarding the conservation of stingless bees and melitophilous plants.

 

Keywords: Ethnobiology; Ethnoentomology; Traditional communities; Traditional knowledge; Meliponines.

 

Resumen: La precisión de obtener conocimiento de la diversidad de las abejas nativas en un lugar determinado y sus interrelaciones con el ecosistema son numerosas, después de todo, además de ser los mayores polinizadores y responsables del desarrollo de plantas existentes en el medio ambiente, también son destacan por su valor económico y sociocultural. El objetivo era registrar el etnoconocimiento sobre las abejas sin aguijón por parte de los residentes de la comunidad de José Gomes, en el municipio de Cabeceiras do Piauí, Piauí. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas aplicadas a 43 actores locales, 39 hombres y cuatro mujeres. Las meliponinas fueron capturadas a través de redes entomológicas y contenedores, y enviadas para su identificación. Se recolectaron 124 especímenes, distribuidos en seis géneros y 13 especies de abejas sin aguijón. De las especies muestreadas, las más abundantes fueron Scaptotrigona sp. (n = 25), Trigona sp. (n = 17), Tetragona sp. (n = 14), Trigona spinipes (n = 13) y Partamona ailyae (n = 10). El índice de Shannon-Wiener (H ') se utilizó para estimar la diversidad de las abejas sin aguijón, que fue H ’= 1,02. Se encontró que los residentes perciben y reconocen la diversidad de meliponinas existentes en el área estudiada, sin embargo, es necesario establecer una mayor divulgación sobre la importancia del papel de estos insectos para la conservación del ecosistema, mejorado a través de una educación ambiental intensificada, principalmente sobre la conservación de abejas sin aguijón y plantas melitofílicas.

 

Palabras clave: Etnobiología; Etnoentomología; Comunidades tradicionales; Conocimiento tradicional; Meliponinas

 

INTRODUÇÃO

 

A biodiversidade de abelhas no planeta é elevada, já sendo descritas cerca de 20.000 espécies (SILVA et al., 2014), em que a maioria tem hábito solitário e, aproximadamente, 1.000 são sociais. De acordo com Cortopassi-Laurino e Nogueira Neto (2016) as abelhas sem ferrão ou meliponíneos (Hymenoptera, Apidae, Meliponini), compõem o grupo Eussociais, distribuídas nas regiões tropical e subtropical do mundo, representadas por aproximadamente 600 espécies, encontradas na África, Oceania, Austrália, Porção Tropical do México, América Central e do Sul.

No Brasil estima-se que existam em torno de 1.700 espécies de abelhas (MOURE et al., 2013), distribuídas em cinco famílias (SILVA et al., 2014), dentre estas, aparecem as abelhas sem ferrão em volta de 250 espécies, pertencentes à tribo Meliponini, dividida em 29 gêneros (PEDRO, 2014), que são objeto de constantes pesquisas, visando desenvolver os conhecimentos para a diversificação da sua produção e uso sustentável. Além de que as informações disponíveis sobre os meliponíneos são pouco expressivas, se comparadas às abelhas africanas.

Apesar de que na região Nordeste já ocorra criações de abelhas sem ferrão (ALVES et al., 2007) no estado do Piauí os trabalhos, são incipientes (TORQUATO et al., 2009; OLIVEIRA; MARANDINO, 2011; NASCIMENTO et al., 2016; BATISTA et al., 2019).

A importância das abelhas nativas é reconhecidamente alta para o meio ambiente, uma vez que são consideradas polinizadoras eficazes de 30% a 80% das culturas silvestres e agrícolas (KERR et al., 2001). A polinização é um artífice para a conservação da biodiversidade e se faz cada vez mais necessário o conhecimento da inter-relação dos polinizadores com a comunidade florística.

A acuidade de se obter o conhecimento da diversidade de abelhas nativas de um determinado local e suas inter-relações com o ecossistema é vasta, afinal, além de serem os principais polinizadores e responsáveis pela reprodução das plantas existentes no meio ambiente, também se destacam pelo seu valor econômico e sociocultural. Palazuelos Ballivian (2008) destaca que as abelhas sem ferrão possuem um papel significativo na religião, mitos, ritos, crenças, bem como na alimentação de vários povos do mundo.

Diante do que foi exposto e partindo do pressuposto de que cada população humana possui os saberes da diversidade biológica, questionou-se: Qual o conhecimento existente na população de José Gomes acerca dos meliponíneos?

Pressupõe-se que os moradores da comunidade José Gomes detêm conhecimento acurado a respeito das espécies de abelhas nativas existentes, integrando desde os aspectos da ecologia e taxonomia, aos diversos aspectos utilitários e etológicos, devido a convivência entre as várias gerações no local e pela exploração no uso dos produtos gerados. Com isso, objetivou-se relatar o etnoconhecimento da população e a diversidade de abelhas sem ferrão da comunidade de José Gomes, município de Cabeceiras do Piauí, Piauí.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

Área de Estudo

O estudo foi realizado na comunidade José Gomes (4º27’34,7” S e 42º20’58” W), município de Cabeceiras do Piauí, mesorregião Norte Piauiense e microrregião do Baixo Parnaíba Piauiense (Figura 1). O referido município possui área de 608,525 km2 e população estimada de 9.928 habitantes, sendo 1.657 na zona urbana e 8.271 na zona rural (IBGE, 2010).

 

Figura 1. Localização do município de Cabeceiras do Piauí, Piauí e da comunidade José Gomes.

 

Geologicamente, a área de estudo assenta-se sobre a bacia sedimentar (aulacógeno) do Parnaíba (AGUIAR; GOMES, 2004), sofrendo ações do clima Tropical Subúmido Seco (ANDRADE JÚNIOR et al., 2004), caracterizado por insolação acima de 2.000 h/ano e médias de precipitações e temperaturas (mínimas e máximas) anuais de 1.535 mm, 22ºC e 35ºC, respectivamente.

Na região de Cabeceiras do Piauí, há a ocorrência da estiagem em cerca de seis a sete meses do ano, sendo as precipitações pluviais habitualmente torrenciais e concentradas nos quatros primeiros meses do ano.

Em razão do estado do Piauí possuir uma elevada heterogeneidade espacial e ambiental, a cobertura vegetal do Estado apresenta-se como um mosaico de tipos vegetacionais que vão desde os mais secos, como as caatingas, até os mais úmidos, como as florestas estacionais semideciduais nos limites dos estados do Piauí e Maranhão (BOTREL et al., 2015; SOUSA, et al., 2017).

 

Aplicação do formulário

Inicialmente, foi aplicada a técnica do Rapport (BERNARD, 2017), como forma de adquirir familiarização e confiança com os membros da comunidade. Assim, nos primeiros meses da pesquisa foram estabelecidos contatos prévios com líderes da comunitários e posterior apresentação da proposta do trabalho para os atores locais. O universo amostral dos entrevistados na comunidade foi definido a partir da metodologia sugerida por Begossi et al. (2010), em decorrência dos estudos em comunidades, com até 50 famílias, proceder entrevistas em todas as residências. Os dados foram obtidos por meio de formulários semiestruturados padronizados, contendo perguntas de cunho socioeconômico e etnobiológico (BERNARD, 2017), entrevistando-se um morador por residência (BEGOSSI et al., 2010), havendo a permissão do entrevistado para apresentação dos dados e imagens, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI), nº do parecer 1.895.391, autorizada pelo Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade - SISBIO sob número 56980-1 e cadastrada no SisGen n° A7C500A.

 

Coleta e Análise dos Dados

Os meliponíneos foram coletados na vegetação do entorno da comunidade, com a ajuda de 14 “especialistas locais” que detinham conhecimento acerca das abelhas sem ferrão, no momento da realização das turnês-guiadas (BERNARD, 2017). As coletas foram realizadas duas vezes por mês em dias alternados, com condições atmosféricas favoráveis, durante seis meses (abril a setembro de 2017), com auxílio de redes entomológicas, sobre as flores, em trilhas na mata, córregos e diretamente dos ninhos, seguindo a metodologia proposta por Sakagami et al. (1967), com modificações. Os moradores receberam vasilhames onde acondicionaram as abelhas coletadas, e periodicamente, os mesmos foram recolhidos, conforme metodologia adaptada de Costa Neto (2003).

Os espécimes capturados foram mortos em câmara mortífera contendo acetado de etila e transferidos para frascos contendo álcool 96%, sendo conduzidos ao Laboratório de Entomologia do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Piauí (UFPI), para reidratação, que foi procedida transferindo-os para o álcool absoluto por 20 minutos, e depois transferidos para uma solução de álcool absoluto e clorofórmio na proporção de 1:1, por mais 20 minutos. Em seguida, os espécimes foram transferidos para uma folha de papel absorvente macio e cobertos inteiramente por 40 minutos para que ficassem secos. Prosseguindo, os insetos foram montados em uma placa de isopor com alfinetes entomológicos (KRUG; ALVES DOS SANTOS, 2008), e deixados próximos a uma lâmpada de luz quente por cerca de 40 minutos. Após este procedimento, os pelos dos insetos foram penteados sob a lupa com pincel número dois, macio, confeccionados com pelos de orelha de porco, sendo transferidos para um depósito e enviado pelos correios para identificação por especialistas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), posteriormente foram depositados na Coleção Entomológica do Museu de História Natural (MHNBA) da UFBA.

Os resultados obtidos foram expressos em porcentagens com o auxílio do software Microsoft Office Excel 2016. O índice de Shannon (H’) para calcular a diversidade de espécies coletadas na comunidade (KREBS, 1978), que mede o grau de incerteza em prever a que espécie pertencerá um indivíduo escolhido, ao acaso, em uma amostra. Quanto menor o valor do índice de Shannon, menor o grau de incerteza e, portanto, a diversidade da amostra é baixa. A diversidade tende a ser mais alta quanto maior for o valor do índice, calculado por meio da equação 1.

 

Em que: H’ = índice de diversidade de Shannon-Wiener; é o número total de espécies; pi = ni / N; ni corresponde ao número de indivíduos da espécie presente na amostra; representa o número total de organismos na amostra.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

Dente os moradores da comunidade José Gomes, 90,70% pertencem ao gênero masculino e 9,30% ao gênero feminino, distribuídos nas faixas etárias que variaram entre 18 e 24 anos (2,32%), 25 a 59 anos (65,12%) e a partir de 60 anos (32,56%).

No que concerne ao perfil socioeconômico dos comunitários, a maior parte destes sobrevivem da lavoura (53,49%), cultivando principalmente feijão (Vigna unguiculata (L.) Walp.), arroz (Oryza sativa L.), abóbora (Cucurbita pepo L.), milho (Zea mays L.) e melancia (Citrullus lanatus (Thumb.) Matsum & Nakai), enquanto 20,93% são aposentados e se utilizam desse benefício para sua sobrevivência, 14,31% vivem da pesca, 6,63% atuam como pedreiro, 2,32% são funcionários públicos, atuando como professor da educação básica do município e 2,32% vivem do comércio.

Em função da preponderância do trabalho agrícola familiar em Cabeceiras do Piauí, esse cenário confirmou as análises de Silva et al. (2016) que destacaram a agricultura familiar nas transformações ocorridas no espaço rural de sociedades capitalistas desenvolvidas, configurando-se, como uma nova categoria da economia agrícola, que incorpora múltiplas situações particulares.

Quanto à escolaridade dos moradores, 60,32% possuem o Ensino Fundamental Incompleto, 16,30% Ensino Fundamental Completo, 2,32% possuem o Ensino Médio Completo, 2,32% o Ensino Médio Incompleto e 18,74% informaram que não são escolarizados. Constata-se que a inexistência de escola na comunidade dificultou o acesso à educação por parte de muitos comunitários, justificando o percentual de moradores com Ensino Fundamental Incompleto e não escolarizados. Somado a isso, a falta de acesso a conduções, as condições precárias das estradas, o árduo trabalho praticado na agricultura de subsistência e o elevado índice de migração dos moradores para as zonas urbanas em busca de melhores oportunidades de trabalho, inviabilizaram o prosseguimento dos estudos de uma quantidade significativa dos atores locais. Situação semelhante também foi verificada Batista et al. (2016) ao estudarem a comunidade rural Novo Nilo/PI e da mesma forma, a pesquisa de Oliveira e Menini Neto (2012) no povoado de Manejo, Lima Duarte/MG, ao observaram o nível de escolaridade da população local.

Quanto ao uso do mel, 25,4% dos entrevistados o obtêm por meio da compra e utilizam como remédio e alimento; 20,9% compram e utilizam somente para remédio misturado com o sumo do limão-azedo (Citrus limonum Risso) para tratar de doenças como a gripe, resfriado e tosse, 16,9% coletam e usam como remédio e alimento, 11,3% coletam e usam exclusivamente como remédio de forma in natura no tratamento de inflamação da garganta e 25,5% não coletam e nem usam. É importante ressaltar que os atores locais citaram apenas o uso ou não do mel, diante dos vários produtos que as abelhas oferecem. Estes dados são corroborados por Reyes-González (2014), ao verificar que vários povos consomem o mel das abelhas sem ferrão na alimentação, acompanhado de uma bebida quente, e como remédio ao fazerem uma mistura do mel principalmente com o suco de limão, sendo essa mistura utilizada para tratar diversas doenças como: resfriado, tosse, bronquite e outras doenças respiratórias. Além de ser utilizado como antisséptico e anti-inflamatório.

Costa Neto e Pacheco (2005), ao estudarem o uso de insetos como recursos medicinais por moradores do povoado de Pedra Branca/BA, observaram propriedades atribuídas, ou seja, da quantidade de doenças tratáveis com remédios obtidos de insetos. A abelha arapuá, Trigona spinipes (Fabricius, 1793) foi a etnoespécie mais versátil, sendo prescrita para 11 indicações, dentre as quais, a gripe. Ainda na referida pesquisa foi registrado o uso do mel de abelha uruçu (Melipona sp.) para gripe, bronquite, tosse, asma e problemas intestinais.

Para os moradores, dos seres vivos percebidos como “insetos”, a maioria (60%) pertence a classe Insecta, 16% Aracnida, 12% Mammalia, 4% Amphibia, 4% Diplopoda, e 4% Reptilia, e são considerados como feios, sujos e perigosos, conforme cita moradoras: “São bichos que maltratam quando morde, tem gente que até morre” (C. 55 anos); “Eu faço é matar na hora que eu vejo esses bicho ruim (D. 45 anos)”. Esse fato é corroborado por outros estudos etnoentomológicos os quais citam que os animais tidos como “insetos” são vistos pela população como nojentos, nocivos, perigosos, ou que podem causar algum dano à saúde humana (COSTA NETO; PACHECO, 2004). Desse modo, os moradores da comunidade José Gomes incluem diferentes animais no etnogrupo inseto.

Do ponto de vista da biodiversidade de abelhas locais, foram coletados 124 espécimes, distribuídos em seis gêneros e 13 espécies de abelhas sem ferrão, sendo 25 machos e 99 fêmeas, numa proporção de 0,24 machos para cada fêmea. Do total das espécies amostradas, as mais abundantes foram Scaptotrigona sp..  (n=25), sendo a espécie mais expressivamente encontrada, seguida da Trigona sp.  (n = 17), Tetragona sp.  (n = 14), Trigona spinipes (Fabricius, 1793) (n = 13) e Partamona ailyae (Camargo, 1980 (n = 10), totalizando 72,58% dos indivíduos amostrados (Tabela 1).

 

Tabela 1. Espécies de meliponíneos machos e fêmeas coletadas na comunidade José Gomes, Cabeceiras do Piauí, Nordeste do Brasil.

Espécies

Nome Popular

Número de Indivíduos

 

Macho

Fêmea

Total

Melipona (Michmelia) aff. flavolineata (Friese, 1900)

Uruçu-amarela

0

8

8

 

Oxytrigona tataira (Smith, 1863)

Tataíra

0

6

6

 

Partamona ailyae (Camargo, 1980)

Cupira

0

10

10

 

Partamona chapadicola (Pedro & Camargo, 2003)

Cupira

0

9

9

 

Partamona seridoensis (Pedro & Camargo, 2003)

Cupira

0

2

2

 

Scaptotrigona aff. depilis (Moure, 1942)

Canudo

0

8

8

 

Scaptotrigona sp.  (machos)

Canudo

25

0

25

 

Tetragona clavipes (Fabricius, 1804)

Borá

0

5

5

 

Tetragona sp.

Borá

0

14

14

 

Trigona hyalinata (Lepeletier, 1836)

Arapuá

0

2

2

 

Trigona pallens (Fabricius, 1798)

Olho-de-vidro

0

5

5

 

Trigona spinipes (Fabricius, 1793)

Arapuá

0

13

13

 

Trigona sp.

Sanharó

0

17

17

 

 

 

25

99

124

 

 

A comunidade apresenta uma variedade de espécies de abelhas sem ferrão, corroborando com Silveira et al. (2002) que destacaram que o Brasil é rico em diversidade de abelhas nativas sem ferrão.

Dentre as espécies identificadas por taxonomistas, os especialistas locais reconheceram sete tipos diferentes de abelhas sem ferrão que foram reconhecidas com base em suas características morfológicas e comportamentais, comprovada após classificação taxonômica, conforme a Tabela 2. Isso leva a crer justamente, que a maioria dos residentes possui em seus quintais e nas roças plantas que são visitadas pelas abelhas. O mesmo aspecto é observado nas andanças pelas matas da comunidade, segundo relatos de residentes:

 

“Aqui na comunidade nós planta várias plantas para nossa alimentação e a gente veja muitas abelhas nas flor dessas plantas, e cremos que isso e importante tanto para a flor como para a abelha, pois uma está alimentando a outra, e a planta desenvolve o fruto” (A., 61 anos).

“Quando andamos pelo mato e vamos para a roça também existe várias flor com muitas abelhas, como a flor do piqui, do mameleiro, do babaçu, do podói e da unha de gato e a gente sabe que as abelhas estão fazendo uma coisa ali que ajuda tanto a planta como a ela mesmo, e acho que estão se alimentando (abelhas) das flor e fazendo as flor produzir fruto” (S., 55 anos).

 

O conhecimento dessas populações acerca dos insetos está intimamente ligado ao tempo em que eles vivem no ambiente, permitindo-lhes compreender a lógica do equilíbrio, suas interligações físicas e biológicas do ecossistema (LÉVI-STRAUS, 1970). Essa sabedoria é uma forma de perceber a natureza pelas diferentes sociedades tradicionais, onde elas possuem conhecimento minucioso da diversidade biológica e ecológica, ordenando e classificando a natureza. Sustenta ainda a hipótese de que, esses povos ao agrupar e nomear de forma escalonada e abrangente os seres vivos, estão pensando taxonomicamente, e que isso é “algo compartilhado por todas as sociedades humanas” (GIANNINI, 1995).

 

Tabela 2. Etnoespécies identificadas pelos moradores da comunidade José Gomes, Cabeceiras do Piauí, Piauí conforme comportamento e morfologia das abelhas sem ferrão.

Etnoespécie

Espécie

Comportamento

Morfologia

(Conhecimento local)

(Conhecimento local)

Arapuá/Irapuá

Trigona spinipes (Fabricius, 1793)

Muito agressiva, tenta entrar nos ouvidos e nariz para se defender, além de se enrolar nos cabelos e morder a pele”. (C. 55 anos)

“É pequena e é toda escura”. (C. 55 anos)

Trigona hyalinata (Lepeletier, 1836)

Borá

Tetragona clavipes (Fabricius, 1804)

“Agressiva, principalmente na quentura, se defende mordendo a pele e se enrolando nos cabelos” (A. 61 anos)

“É comprida, e possui uma cor marron-escura e o mel é azedo”. (A. 61 anos)

Tetragona sp.

Canudo

Scaptotrigona aff. depilis (Moure, 1942)

“Muito agressiva, solta um líquido nos cabelos e morde” (D.40 anos)

“Possui uma cor preta brilhante, pequenas asas, com uns pontos brancos no peito”. (D. 40 anos)

Scaptotrigona sp.

Cupira

Partamona ailyae (Camargo, 1980)

 “Muito zangada e defende seu ninho” (M. 50 anos)

“Ela é pequena e preta parece até com um cupim, faz os ninhos no cupinzeiro”. (M. 50 anos)

Partamona chapadicola (Pedro & Camargo, 2003)

Partamona seridoensis (Pedro & Camargo, 2003)

Olho-de-vidro, cutia-o-de-purga

Trigona pallens (Fabricius, 1798)

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Sanharó

Trigona sp.

Agressiva, se enrola nos cabelos e morde. Faz seus ninhos nos ocos das árvores”. (B. 46 anos)

É pequena de cor preta brilhante”. (B. 46 anos)

Tataíra

Oxytrigona tataira (Smith, 1863)

Agressiva, libera uma meleca que queima a pele da pessoa, para se defender”. (R. 38 anos)

É pequena de cor preta”. (R. 38 anos)

Uruçu-amarela

Melipona (Michmelia) aff. flavolineata (Friese, 1900)

Pouco agressiva, só beslica a pele”. (A. 61 anos)

Ela é bonita, tem os pelos amarelos da cor de ouro”. (A. 61 anos)

 

A diversidade de abelhas sem ferrão coletadas na comunidade foi de H’ = 1,02. Este dado foi praticamente semelhante aos de outras áreas da região Nordeste do Brasil, como os de Sousa et al. (2005) que na Reserva Biológica Guaribas/PB, encontraram a maior diversidades de abelhas Euglossina (Hymenoptera, Apidae), segundo o índice de Shannon-Wiener, nas áreas de Mata com valor de (H' = 0,97), e de Tabuleiro (H' = 0,94), tendo a área de Transição uma diversidade menor (H' = 0,64).

No estado Piauí, o trabalho de Oliveira (2011), avaliou a diversidade de abelhas silvestres Euglossini (Hymenoptera, Apoidea) na região do Delta do Parnaíba, Brasil e a percepção da importância das abelhas pela população local, que apresentou um índice de Shannon-Winner, baixo nas duas áreas de coleta, sendo de H’= 0,680 na área de Boa Vista e de H’= 0,522 na área de Reserva Legal da empresa Vegeflora Extrações do Nordeste Ltda. Essa baixa diversidade de abelhas implica diretamente no conhecimento da população acerca das abelhas.

O conhecimento sobre as abelhas sem ferrão repercute no entendimento da distribuição e nas inter-relações sistêmicas destes insetos com seus habitats, destacando-se como uma ferramenta de valorização e empoderamento do patrimônio natural por comunidades tradicionais. Isto implica na conservação ambiental, no desenvolvimento de atividades produtivas sustentáveis, empregando os serviços ecológicos disponíveis in loco, fomentando a produção de gêneros alimentícios de maior qualidade e quantidade, constituindo-se como uma técnica para implementação de identidade geográfica. Enfim, subsidia a reorientação e o desenvolvimento endógeno da comunidade, assegurando seus recursos e seu modo de vida a longo prazo.

 

CONCLUSÃO

 

Os moradores da comunidade José Gomes município de Cabeceiras do Piauí/PI percebem e reconhecem a diversidade de meliponíneos existentes na área estudada, não obstante é necessário que se estabeleça maior divulgação sobre a importância do papel desses insetos para a conservação do ecossistema, aprimorado por meio de uma intensificada educação ambiental, principalmente no que concerne a conservação das abelhas sem ferrão e das plantas melitófilas.

 

AGRADECIMENTO(S)

 

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão de bolsa ao primeiro autor.

Aos moradores da comunidade José Gomes, Cabeceiras do Piauí/PI, pela parceria, acolhimento e disponibilidade em auxiliar para o desenvolvimento desta pesquisa.

 

REFERÊNCIAS

 

AGUIAR, R. B.; GOMES, J. R. C.  Projeto cadastro de fontes de abastecimento por água subterrânea, estado do Piauí: diagnóstico do município de Cabeceiras do Piauí. Fortaleza: CPRM - Serviço Geológico do Brasil, 2004, 15p.

 

ALVES, R. M. O.; SODRÉ, G. S.; SOUZA, B. A.; CARVALHO, A. L. L.; FONSECA, A. A. O. Desumidificação: uma alternativa para a conservação do mel de abelhas sem ferrão. Mensagem Doce, v.91, p.2-8, 2007.

 

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