A Itália na Faculdade de Direito do Recife e a legislação penal brasileira no início do século XX
Resumo
Nascido em Recife, João Vieira de Araújo (1844-1923) se formou em Direito na Faculdade de Direito do Recife antes da maioridade, concluindo o doutorado em 1873 ainda filiado ao partido conservador. Inicialmente, seguiu a carreira da magistratura em Pernambuco. Foi juiz municipal de Cimbres de 1866 a 1870, cidade na qual foi ainda delegado de polícia de 1868 a 1870 e delegado “literário” entre 1869 e 1870. De 1870 a 1875 foi eleito deputado provincial. Em 1872 foi nomeado juiz de direito de Bom Conselho e Bezerros, função à qual esteve ligado até 1877: de fato, ele se afastou da magistratura em 1874 para presidir a província de Alagoas, função na qual restou até 1875. Foi ainda deputado constituinte e federal, com uma interrupção de três anos, de 1890 a 1911. Mas o seu caráter e a sua obra são menos conservadores do que mostra o seu perfil.
A vida de João Vieira de Araújo coincidiu com a da própria Escola do Recife. Ao contrário dos membros mais influentes da Escola, mais próximos a Tobias Barreto (persona non grata ao conservadorismo da Faculdade recifense), João Vieira teve uma tranquila vida acadêmica: foi nomeado em 1877 professor substituto na Faculdade de Direito, sendo promovido a catedrático em 1884. Pôde, assim, usufruir do ambiente acadêmico mais do que Tobias Barreto, finalmente professor em um tumultuado concurso somente a poucos anos da morte precoce em 1889. Movemo-nos assim neste texto naquele período que, formalmente situado no século xix, mentalmente coloca-se já no século xx: do ponto de vista de um discurso generacional, de fato, as duas últimas décadas do século xix se identificam com as primeiríssimas décadas do século xx.
Clóvis Bevilaqua inseriu João Vieira entre os componentes da fase jurídica da Escola do Recife[1] sobretudo em razão dos princípios teóricos por ele adotados, da natureza vanguardista de sua obra e das originais influências nela contidas: o evolucionismo de Herbert Spencer (seguido, durante um certo período, também por Tobias Barreto) e também o de Roberto Ardigò[2], acompanhado das teorias de juristas italianos como Poletti (para os sistemas punitivos); Giuseppe Sergi[3] (para as relações entre psicologia e delinqüência); Bernardino Alimena[4] e Filippo Turati[5] (para os comentários variados à legislação criminal). Todavia, a maior e substancial influência italiana em João Vieira foi exercida pela escola antropológica italiana de Lombroso, Ferri e Garofalo, presentes com inumeráveis citações em todos os seus trabalhos. Esta influência não teria muito de original, se se tem em mente que os ideias desta escola italiana circularam com intensidade no Brasil e, em geral, na América do Sul do final do século passado. De fato, a influência da Escola positiva italiana no Brasil é do conhecimento geral, apesar de pouco detalhada. O que impressiona então na recepção destas ideias em João Vieira é a quantidade, a intensidade e a repercussão externa, particularmente a européia, desta recepção-reelaboração de ideias italianas no Brasil.
Mas nem por isso João Vieira de Araújo permaneceu na memória coletiva brasileira depois da morte. Ele seguiu, assim, a sorte da maioria dos positivistas, incluindo os italianos citados neste texto: o esquecimento, depois que as teorias pouco neutras e de moda esposadas pelo positivismo saíram de moda, expulsas no mais das vezes, no caso dos juristas positivistas, com a substituição dos códigos e leis que eventualmente as abrigavam. Por isso, encontrar as obras de João Vieira de Araújo não é uma tarefa fácil: eis que surge uma boa razão para o estudo deste autor na memória jurídica nacional.
[1] Clóvis Bevilaqua, Historia da Faculdade de Direito do Recife, Historia da Faculdade de Direito do Recife, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro - São Paulo, Belo Horizonte 1927, vol. I, p. 67.
[2] Roberto Ardigò (1828-1920), filósofo e sociólogo, ao lado de Lombroso é a figura mais conhecida e estudada entre os positivistas italianos. Inicialmente sacerdote, abandonou a Igreja pela reflexão filosófica. Sua obra Psicologia come scienza positiva, de 1870, foi o primeiro escrito positivista na Itália, com o qual se colocava definitivamente de lado os conceitos metafísicos; sua filosofia representa a máxima expressão do positivismo italiano. Os problemas da sociedade e do direito foram por Ardigò amplamente tratados nos volumes La morale dei positivisti, de 1878-79, e Sociologia, de 1886. Não sendo jurista, todavia, Ardigò possui deste fenômeno uma concepção peculiar, que vai muito além do formalmente vigente. A sociologia de Ardigò, por sua vez, tem o aspecto de filosofia jurídica, segundo Fassò. Por exemplo, a força específica do organismo social é por Ardigò denominada “justiça”, exercício de poder sobre os indivíduos que a tal poder estão submetidos. Ou seja, justiça enquanto lei, enquanto direito objetivo. No que se refere à continuidade da evolução, para Ardigò este processo passa do indistinto ao distinto, em toda a realidade (física, social ou psíquica). A própria justiça, pois, seria resultado desta “formação natural” evolutiva, que partiria da prepotência e chegaria ao justo. Cfr. Guido Fassò, La filosofia del diritto dell’Ottocento e del Novecento, nuova edizione, Il Mulino, Bologna 1994, p. 150.
[3] Giuseppe Sergi (1841-1936), filósofo e antropólogo, foi professor de antropologia em Bolonha a partir de 1880 e em Roma de 1884 a 1916. Da filosofia, Sergi passou à psicologia e à pedagogia, divulgando entre 1880 e 1890 o positivismo na versão mecanicista spenceriana. Como exemplo dos extremos aos quais chegou o pensamento positivista na Itália pode-se citar sua obra Degenerazioni umane, de 1889. Mas para não recordar apenas os seus aspectos negativos, podem-se mencionar ainda suas várias publicações sobre a estirpe mediterrânea, consideradas notáveis pelas obras de consulta.
[4] Bernardino Alimena (1861-1915), penalista e filósofo do direito, professor em Cagliari e, a partir de 1900, em Modena, foi um dos fundadores da Escola crítica do direito criminal, que pretendia sintetizar num único sistema as teorias penais da escola clássica e da Escola positiva.
[5] Filippo Turati (1857-1932), intelectual vigoroso, chefe do Partido Socialista italiano. Em resposta às teses (consideradas “burguesa”, do homem naturalmente delinquente de Lombroso, publicou vários escritos sobre o “Estado delinquente”, a “questão social”, o transformismo e a corrupção política, nos quais o estímulo para delinqüir estava identificado com os objetivos processos de diferença entre as classes, mais do que com fatores antropológicos.